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O sagrado

20:07Leivison Barros





O Sagrado

No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as orlas do seu manto enchiam o templo. Os serafins estavam acima dele, cada um tinha seis asas: com duas cobriam os seus rostos, com duas cobriam os seus pés e com duas voavam. E clamavam uns aos outros, dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia de sua glória. Os umbrais das portas se moveram com a voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça. Então disse eu: Ai de mim, que vou perecendo! Porque sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!” (Isaías 06:01-05).

Um breve comentário sobre o Sagrado por Rudolf  Otto.

A intenção de Otto em seu estudo, como diz o subtítulo do mesmo, é observar as características do elemento não-racional em contraste com as do racional, dentro do universo religioso. Mesmo sabendo que a ortodoxia racionalista eliminou o caráter não-racional, e tentou construir um sistema compreensivo de religião que se mede pelos ditames da razão, que acarretou na negação do milagre, a sobreposição do racional ao aspecto não-racional. Contudo, é este aspecto não compreensivo da religião que interessa para Otto, é esse caráter de mistério, de terror, de tremendo, esse algo a mais, que interessará a ele, e o levará a fazer uma importante pesquisa sobre aquilo que ele denominou o caráter numinoso. O texto que se segue não tem a pretensão de um resumo, muito menos de um ensaio descrito sobre o livro, o texto atém-se a traçar um diálogo sobre as teses centrais do livro “O Sagrado”, e elaborar uma análise da importância deste para o estudo e compreensão da religião. 

O numinoso

Esse aspecto ou categoria Otto chamou de “numinoso”. Esse termo tem sua origem no termo latino Numen significa Deus ou divino. O Numinoso corresponderia ao aspecto ativo, experiencial da vivência religiosa e essa categoria só se aplicaria quando o numinoso se manifesta, ou seja,  quando o numinoso se manifesta a um individuo.

Convencionou-se entender a categoria de sagrado como algo estrita e estreitamente ligado ao ético, ao moral e à bondade. Portanto, ser sagrado é o mesmo que ser santo, ou melhor, ser revestido de uma pureza moral e ética inigualável e inacessível, o que confere ao ser que é santo/sagrado uma bondade extraordinária. O sagrado, possui dentro de si elementos morais e éticos, mas não pode ser puro e simplesmente reduzido a estes, o que Otto se propõe a estudar é uma outra dimensão do sagrado, onde o mesmo não pode ser tão facilmente medido e compreendido, elucidado em conceitos ou mais ainda entendido e definido, pois existe apenas no universo do inefável. Otto, como já vimos na introdução, pretende trabalhar em seu livro, o sagrado em direção ao aspecto não-racional, sem deixar de lado, claramente, os aspectos do racional, já que sua intenção é fazer, uma interação entre o não-racional e o racional. Para identificar o sagrado no seu aspecto não-racional ele cunha a palavra numinoso, que também não deixa de possuir aspectos racionais, o numinoso racional na religião, é algo que trataremos mais adiante.  

O numinoso não pode ser entendido, porque não pode ser explicado, isso parece ser óbvio, e o é, já que seu caráter é de algo inefável – se não se pode dizer, não se pode entender. Porém a simplicidade, como Otto trabalha a questão, transforma-a em algo de reduzida compreensão, já que para ele, somente os que viveram uma experiência religiosa é que podem entender, mas não expressar, o que sentiram e viveram em relação ao sagrado, ao numinoso.

O diálogo entre o religioso e o não-religioso se torna, dessa perspectiva, estritamente difícil, já que o homem natural não compreende nada do sagrado, nada do numinoso e nada da religião: “é impossível conversar sobre religião com tal homem” .

 Um caminho para o diálogo poderia ser a experiência estética, entretanto, a mesma é apenas algo muito próximo, mas não é o sentimento religioso. Esse ou esses sentimentos, na experiência religiosa (cristianismo), sempre são experimentados em maior intensidade que nos outros domínios da vida. A gratidão, a confiança, o amor, a segurança, a submissão, a resignação e a dependência, são na religião, ou melhor, na experiência religiosa, sempre mais intensos. Schleiermacher, destacando o sentimento da dependência, enfatiza que o mesmo é diferente de qualquer outro sentimento de dependência encontrado fora da religião .
  
O por que disso? Não dá para explicar? “Isto acontece exatamente porque se trata de um dado cuja origem e fundamento encontram-se na alma” . Parafraseando Chicó (personagem do Auto da Compadecida) podemos dizer: “não sei, só sei que foi assim”.
Para Otto esse sentimento se explica no “sentimento de ser criatura” . Sentimento de que algo está fora de mim e longe do meu alcance, algo que se encontra na divindade para Schleiermacher, mas que ao mesmo tempo está em mim . Relaciona-se ao medo, já que o que está fora de mim é maior do que eu, mas também relaciona-se ao “amor”, já que me sinto atraído para esse que está fora de mim.

O tremendum  

O mysterium tremendum ou o “mistério que faz tremer” , expressa-se primeiramente na forma brutal do sinistro, do terrível, o que para Otto é o aspecto mais primitivo  ou não evoluído do tremendo. É o medo em seu estágio inferior, é o terror, o panicon, o medo dos demônios, o calafrio que manifesta nosso terror frente ao sinistro da vida. Esse sentimento não é o mesmo sentimento do medo comum do homem, é o medo do sinistro que só o homus religiosus  pode ter e experimentar. Ele emudece a alma e pode “conduzir às estranhas excitações, à alucinações, à transportes e à êxtase. Existem formas selvagens e demoníacas, que podem assumir fórmulas de horror irracional” , trazendo à memória o constante embate de Lutero com Satanás.  

Na Bíblia esse “grau inferior” é ultrapassado nos profetas e nos salmos. “O daimon não é um Deus, nem um anti-Deus, mas sim um pré-Deus” , um Deus ainda não desenvolvido. Pois, no desenvolvimento da religião e do aspecto do tremendum, o temor sinistro toma uma outra característica, a característica do temor ao numinoso, que não é o mesmo temor ao demônio. Já que esse medo pode se dar sem que o sinistro esteja presente: “o temor, a angústia, o medo pode encher nossa alma e ultrapassar toda nossa medida sem que se encontre o menor traço do sentimento de sinistro” . É um sentimento em que o numinoso é tudo e nós somos nada, o mesmo sentimento de ser criatura que já foi citado. Esse medo, terror, temor encontra-se num estágio mais elevado da religião, mais evoluído, onde começa a se confundir com o mirum e com o majestas.  

O mirum  

“O mistério torna-se facilmente terrível” , pois tudo aquilo que nos é misterioso, que não conhecemos, que está em secreto, é incompreensível ou inexplicável nos causa um profundo terror.

- Um bom exemplo disto, são as experiências dos homens bíblicos com o Deus da bíblia!

Por ex: Daniel, Ezequiel, João

No entanto esse terror, ou temor, não é o temor ao demoníaco, ele é diferente e pode acontecer independentemente do outro. Ele não está preso e nem vinculado ao horror, ele nos aterroriza porque está ligado ao que é diferente e não ao sinistro, está ligado ao totalmente outro, ao mirum que nos deixa estupefatos e nos “paralisa” , nos estatifica.  

Um Deus compreendido não é um Deus” (citando Tersteengen), por isso nosso faz tremer e ao mesmo tempo o buscar, pois é incompreensível e diferente: “O divino, sob a forma do demoníaco, é para a alma objeto de temor e de horror, ao mesmo tempo que atrai e seduz”.
Agostinho diria: “Que luz é esta que me clareia e que me fere o meu coração sem ofender? Que me faz tremer e abrasar! Tremo, porque sou diferente dela, abraso-me enquanto com ela me pareço”.

 É um negócio que “ao mesmo tempo, alguma coisa exerce uma atração particular, que cativa, fascina e forma com o elemento repulsivo do tremendum, uma estranha harmonia de contrastes”. “Um poeta escreveu: Diante de ti eu tremo, para ti eu sou atraído”. Em um estágio mais evoluído esse sentimento se exprime, no culto que se expressa a uma divindade, ao reconhecimento da necessidade de prestar homenagens e honras a este Ser que nos ultrapassa.

 Como exemplo temos o agradecimento ao cristianismo, pelo perdão dos pecados, pela graça, como expressão contrastante do desejo e da repulsa, da perdição à salvação: “Se apenas uma gota do que eu experimento caísse no inferno, o inferno se transformaria em paraíso” . Como vemos “É o fascinante (aspecto do mirum), que na solenidade, pode encher a alma e dar-lhes uma paz indescritível”. 

O majestas  

É entendido que o deinos é o numinoso numa forma mais primitiva . No entanto, esse temor causado pelo deinos, não é o mesmo causado pelo majestas, pois o terror com relação ao demoníaco é tão somente sinistro, mas em relação ao numinoso (divino) o temor é mais profundo e mais complexo. Não se trata apenas de medo, já que ele é majestas, é também reverência e reconhecimento de uma entidade infinitamente superior. 

No Antigo Testamento, o zelo e a cólera de Jahveh poderiam e geralmente causavam muita destruição. Sua figura inspirava terror: Ai de mim! (Isaías 06:05) “Deus é ira, é cólera, é zelo, é fogo consumidor...Horrível coisa é cair nas mãos de um Deus vivo...Porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 10:31e12:29 ); “Deus os abandonou às paixões infames” [...] “e os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convém” (Romanos 01:24,26). 

Jó também experimenta deste sentimento de ser nada e o outro tudo. É ele quem controla todas as coisas (monismo), é inacessível, é cheio de poder e força, é o Senhor que determina tudo, Ele é tudo e eu não sou nada: “O homem diminui e se dissolve em seu nada, em sua pequenez. Quando mais a grandeza de Deus se revela, clara e pura, a seus olhos, melhor ele reconhece a sua pequenez” ; Tu és. Meu espírito inclina-se e tudo que há de mais íntimo em mim presta testemunho ao que tu és. Mas quem sou eu? O que são as coisas? Sou realmente, e todas as coisas são realmente? O que é o eu? O que é o tudo? Nós somos algo somente porque tu és e porque tu queres que sejamos” (citando Terteengen). Ou ainda, segundo Lutero: “Ele vos engole e encontra um tal prazer que seu apetite e a sua cólera o levam a devorar os maus. Uma vez que ele começou, não pode mais parar [...] Sim, ele é mais terrificante e mais horrível do que o diabo, pois ele nos trata com violência, nos atormenta e tortura sem piedade”

O orgé: início da racionalização  

O tremendum e o majestas implicam em um terceiro elemento, o orgé; que é a energia que empurra o ser humano à vida religiosa, ao zelo, à santidade, ao amor pelo sagrado . Pode-se entender isso como o início da racionalização do divino, a transformação do sagrado/numinoso no sagrado/santidade – moral, ético e dogmatizado. Para Otto, esse é o processo normal da evolução do numinoso dentro da religião: o desenvolvimento da consciência e obrigação moral diante daquele que é digno de receber tal reverência e amor.

Na Bíblia, isso começa com Moisés, passa pelos profetas e chega até os Evangelhos , onde a ênfase é o Reino de Deus que é o numinoso racionalizado, que possui participantes que são chamados de santos, uma característica do numinoso, e tem um mestre que não é menos numinoso que o Reino de sua pregação , o numinoso fica carregado por “elementos racionais, teológicos, pessoais e morais”.

No Novo Testamento, Deus é Senhor dos céus – numinoso/não-racional, mas também é Pai – numinoso/racional. Essa questão moral e de expiação, é um outro aspecto do numinoso de difícil compreensão para o homem natural. Esse não entende o que é pecado, consegue apenas compreender o que é um erro moral, mas não consegue saber o que é e qual é o grau de problema que existe num pecado. Ele está ainda na experiência estética e só assim consegue entender, não faz parte do universo religioso, e, portanto, não evoluiu como o cristão, como sujeito religioso. 
Já no Cristianismo, o numinoso chega a um tal ponto de racionalização e evolução (diálogo entre o racional e o não-racional), que para Otto, ela se estabelece como religião superior a todas as outras. “O mistério da necessidade da expiação não encontra, em nenhuma religião, expressão tão completa como no cristianismo”. 

O não-racional do numinoso   

“O elemento numinoso, não-racional, esquematizado por noções racionais, dão-nos a categoria complexa do sagrado, no sentido pleno da palavra, na totalidade de seu conteúdo”.

  O não-racional na religião não diminui a credibilidade da religião, e nem o racional destrói o não-racional para criar assim credibilidade. E, nesse processo evolutivo, não há apropriação de um pelo outro, há sim substituição de um pelo outro ou adequação de um ao outro – num equilíbrio, ligados, mas não associados. Pois, a religião nunca deixará de ser não-racional e racional9: “a linguagem está tão plena e a vida tão rica de coisas que estão tão longe da razão como dos sentidos! Elas pertencem ao domínio do místico. A religião faz parte desse domínio, terra incógnita para a razão” Tudo aquilo que não pode ser explicado é divinizado, um conhecimento não-racional, que também segundo Schleiermacher, deveria ser considerado como forma de conhecimento.

O que seria bastante difícil no não-racional pré-religioso: fábulas e mitos; elementos da natureza (montanha, sol, lua, rio, etc) como seres vivos – não como deuses ainda; o demonismo – terror, morte, sobrenatural, sinistro, espíritos de almas penadas ; o puro e impuro (fora do aspecto moral que se configurou posteriormente ); a antropofagia e a medicina como magia ; e tantas outras coisas que poderíamos alistar, que são primitivas, mas que também fazem parte da religiosidade moderna, talvez ainda em forma primitiva, talvez em forma mais evoluída: a graça; o culto e a ceia (magia); a predestinação no Cristianismo10 (Paulo) e no Islã11. O não-racional é um “sentimento supra no AT o fator não-racional do numinoso está em Jahveh e o fator racional está no Elohim. 

No entanto na racionalização o numinoso recebeu um conteúdo novo que, segundo Otto, fez a religião evoluir. O numinoso “tornou-se Deus” e foi sistematizado. “A idéia de predestinação torna-se, numa religião racional como o cristianismo, perniciosa e intolerável, por mais que se tente fazê-la inofensiva através de atenuações múltiplas”. “Assim também se explica o que se acostumou chamar de caráter fanático desta religião. O sentimento do numen, é a essência do fanatismo”. 

Por essa razão, são de difícil explicação e compreensão: “Os elementos racionais como os não-racionais da categoria do sagrado são elementos a priori. A religião não está nem sob a dependência do telos nem do ethos e não vive de postulados. O que nela há de não-racional possui, por sua vez, origem independente e mergulha diretamente as suas raízes nas profundezas ocultas do espírito”.

Conclusão: o a priori  

O sagrado de forma simples é formado pela tensa e contínua relação dos elementos, racional e não-racional. O racional como já observamos constitui a domesticação do numinoso pelo divino e religioso, o sagrado (numinoso) substituído pelo sagrado (moral e ético). O não-racional é a expressão da experiência do religioso com o numinoso, como algo integrante da vida. Para Otto, essa substituição de um pelo outro, constitui uma evolução do numinoso na religião: “todo o nosso conhecimento (razão) inicia com uma experiência (não-razão)”.

Lutero entende que esse conhecimento, fruto da experiência, é um “a priori místico no espírito do homem”. Todos os seres humanos possuem uma faculdade pneumática (spiritus sanctus) que os conduzem ao numinoso , isto pode ser visto por exemplo, em Lutero, quanto ao seu conceito de Graça que se estabelece em Jesus. Esse sentimento, segundo Otto, não é universal no sentido de que todos os que possuem, busquem o divino o necessariamente.

Esse sentimento é uma predisposição ao numino, que se dá no homem natural a partir da estética e no religioso a partir da religião. “Desde os dias da minha infância, minha alma buscou-o, com uma sede ardente” (Suso ). “De onde a conhecem que assim a querem? Onde a viram, que assim a amam? Por certo que a temos, não sei de que modo” (Agostinho ). Esse sentimento não se explica, não se entende, não precisa de justificativa, apela a julgamentos a priori, isto é, da consciência religiosa, as profundezas da alma, dos recônditos do ser.   

Essa predisposição ao religioso, além de ser encontrada, em maior grau, nas pessoas mais simples (menos cultas) e em pessoas mais cultas (basta lembrar ou se encontrar com as antigas experiências religiosas); também se encontra, como predisposição, nos seres que além de possuírem uma experiência com o numinoso, são também criaturas numinosas, o que não é para todos : “o demoníaco é aquilo que a inteligência e a razão não podem descobrir (Goethe)” [...] “Certas criaturas têm um caráter demoníaco, e noutras o demoníaco torna-se sensível apenas parcialmente” . Esse demoníaco, “energia e superioridade absoluta”, aparecem em alguns homens de forma extraordinária, o que faz deles homens santos, o que na verdade não são, são apenas numinosos : “o santo não ensina a sua santidade, a torna [sic] visível” , como Jesus por exemplo: “e eles se maravilhavam, e seguiam-no atemorizado” - Mateus 10:32.

Rudolf Otto

Seu humilde teólogo,

Leivison Barros S.

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