O Sagrado
“No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o
Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as orlas do seu manto enchiam
o templo. Os serafins estavam acima dele, cada um tinha seis asas: com duas
cobriam os seus rostos, com duas cobriam os seus pés e com duas voavam. E
clamavam uns aos outros, dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos;
toda a terra está cheia de sua glória. Os umbrais das portas se moveram com a
voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça. Então disse eu: Ai de mim, que
vou perecendo! Porque sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um
povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!”
(Isaías 06:01-05).
Um breve comentário sobre o Sagrado por Rudolf
Otto.
A intenção de Otto em seu estudo, como diz o subtítulo do mesmo, é
observar as características do elemento não-racional em contraste com as do
racional, dentro do universo religioso. Mesmo sabendo que a ortodoxia
racionalista eliminou o caráter não-racional, e tentou construir um sistema
compreensivo de religião que se mede pelos ditames da razão, que acarretou na
negação do milagre, a sobreposição do racional ao aspecto não-racional.
Contudo, é este aspecto não compreensivo da religião que interessa para Otto, é
esse caráter de mistério, de terror, de tremendo, esse algo a mais, que
interessará a ele, e o levará a fazer uma importante pesquisa sobre aquilo que
ele denominou o caráter numinoso. O texto que se segue não tem a pretensão de
um resumo, muito menos de um ensaio descrito sobre o livro, o texto atém-se a
traçar um diálogo sobre as teses centrais do livro “O Sagrado”, e elaborar uma
análise da importância deste para o estudo e compreensão da religião.
O numinoso
Esse aspecto ou categoria Otto chamou de “numinoso”. Esse termo tem sua
origem no termo latino Numen significa Deus ou divino. O Numinoso corresponderia
ao aspecto ativo, experiencial da vivência religiosa e essa categoria só se
aplicaria quando o numinoso se manifesta, ou seja, quando o numinoso se
manifesta a um individuo.
Convencionou-se entender a categoria de sagrado como algo estrita e
estreitamente ligado ao ético, ao moral e à bondade. Portanto, ser sagrado é o
mesmo que ser santo, ou melhor, ser revestido de uma pureza moral e ética
inigualável e inacessível, o que confere ao ser que é santo/sagrado uma bondade
extraordinária. O sagrado, possui dentro de si elementos morais e éticos, mas
não pode ser puro e simplesmente reduzido a estes, o que Otto se propõe a
estudar é uma outra dimensão do sagrado, onde o mesmo não pode ser tão
facilmente medido e compreendido, elucidado em conceitos ou mais ainda
entendido e definido, pois existe apenas no universo do inefável. Otto, como já
vimos na introdução, pretende trabalhar em seu livro, o sagrado em direção ao
aspecto não-racional, sem deixar de lado, claramente, os aspectos do racional,
já que sua intenção é fazer, uma interação entre o não-racional e o racional.
Para identificar o sagrado no seu aspecto não-racional ele cunha a palavra
numinoso, que também não deixa de possuir aspectos racionais, o numinoso
racional na religião, é algo que trataremos mais adiante.
O numinoso não pode ser entendido, porque não pode ser explicado, isso
parece ser óbvio, e o é, já que seu caráter é de algo inefável – se não se pode
dizer, não se pode entender. Porém a simplicidade, como Otto trabalha a
questão, transforma-a em algo de reduzida compreensão, já que para ele, somente
os que viveram uma experiência religiosa é que podem entender, mas não
expressar, o que sentiram e viveram em relação ao sagrado, ao numinoso.
O diálogo entre o religioso e o não-religioso se torna, dessa
perspectiva, estritamente difícil, já que o homem natural não compreende nada
do sagrado, nada do numinoso e nada da religião: “é impossível conversar sobre
religião com tal homem” .
Um caminho para o diálogo poderia
ser a experiência estética, entretanto, a mesma é apenas algo muito próximo, mas
não é o sentimento religioso. Esse ou esses sentimentos, na experiência
religiosa (cristianismo), sempre são experimentados em maior intensidade que
nos outros domínios da vida. A gratidão, a confiança, o amor, a segurança, a
submissão, a resignação e a dependência, são na religião, ou melhor, na
experiência religiosa, sempre mais intensos. Schleiermacher, destacando o sentimento
da dependência, enfatiza que o mesmo é diferente de qualquer outro sentimento
de dependência encontrado fora da religião .
O por que disso? Não dá para
explicar? “Isto acontece exatamente porque se trata de um dado cuja origem e
fundamento encontram-se na alma” . Parafraseando Chicó (personagem do Auto da
Compadecida) podemos dizer: “não sei, só sei que foi assim”.
Para Otto esse sentimento se explica no “sentimento de ser criatura” .
Sentimento de que algo está fora de mim e longe do meu alcance, algo que se
encontra na divindade para Schleiermacher, mas que ao mesmo tempo está em mim .
Relaciona-se ao medo, já que o que está fora de mim é maior do que eu, mas
também relaciona-se ao “amor”, já que me sinto atraído para esse que está fora
de mim.
O tremendum
O mysterium tremendum ou o “mistério que faz tremer” , expressa-se
primeiramente na forma brutal do sinistro, do terrível, o que para Otto é o
aspecto mais primitivo ou não evoluído
do tremendo. É o medo em seu estágio inferior, é o terror, o panicon, o medo
dos demônios, o calafrio que manifesta nosso terror frente ao sinistro da vida.
Esse sentimento não é o mesmo sentimento do medo comum do homem, é o medo do
sinistro que só o homus religiosus pode
ter e experimentar. Ele emudece a alma e pode “conduzir às estranhas
excitações, à alucinações, à transportes e à êxtase. Existem formas selvagens e
demoníacas, que podem assumir fórmulas de horror irracional” , trazendo à
memória o constante embate de Lutero com Satanás.
Na Bíblia esse “grau inferior” é ultrapassado nos profetas e nos
salmos. “O daimon não é um Deus, nem um anti-Deus, mas sim um pré-Deus” , um
Deus ainda não desenvolvido. Pois, no desenvolvimento da religião e do aspecto
do tremendum, o temor sinistro toma uma outra característica, a característica
do temor ao numinoso, que não é o mesmo temor ao demônio. Já que esse medo pode
se dar sem que o sinistro esteja presente: “o temor, a angústia, o medo pode
encher nossa alma e ultrapassar toda nossa medida sem que se encontre o menor
traço do sentimento de sinistro” . É um sentimento em que o numinoso é tudo e
nós somos nada, o mesmo sentimento de ser criatura que já foi citado. Esse
medo, terror, temor encontra-se num estágio mais elevado da religião, mais evoluído,
onde começa a se confundir com o mirum e com o majestas.
O mirum
“O mistério torna-se facilmente terrível” , pois tudo aquilo que nos é
misterioso, que não conhecemos, que está em secreto, é incompreensível ou
inexplicável nos causa um profundo terror.
- Um bom exemplo disto, são as experiências dos homens bíblicos com o
Deus da bíblia!
Por ex: Daniel, Ezequiel, João
No entanto esse terror, ou temor, não é o temor ao demoníaco, ele é
diferente e pode acontecer independentemente do outro. Ele não está preso e nem
vinculado ao horror, ele nos aterroriza porque está ligado ao que é diferente e
não ao sinistro, está ligado ao totalmente outro, ao mirum que nos deixa
estupefatos e nos “paralisa” , nos estatifica.
“Um Deus compreendido não é um Deus”
(citando Tersteengen), por isso nosso faz
tremer e ao mesmo tempo o buscar, pois é incompreensível e diferente: “O divino, sob a forma do demoníaco, é para a alma objeto
de temor e de horror, ao mesmo tempo que atrai e seduz”.
Agostinho diria: “Que luz é esta que me
clareia e que me fere o meu coração sem ofender? Que me faz tremer e abrasar!
Tremo, porque sou diferente dela, abraso-me enquanto com ela me pareço”.
É um negócio que “ao mesmo tempo, alguma coisa exerce uma atração particular,
que cativa, fascina e forma com o elemento repulsivo do tremendum, uma estranha
harmonia de contrastes”. “Um poeta escreveu: Diante
de ti eu tremo, para ti eu sou atraído”. Em um estágio mais evoluído
esse sentimento se exprime, no culto que se expressa a uma divindade, ao
reconhecimento da necessidade de prestar homenagens e honras a este Ser que nos
ultrapassa.
Como exemplo temos o agradecimento ao cristianismo, pelo perdão dos
pecados, pela graça, como expressão contrastante do desejo e da repulsa, da
perdição à salvação: “Se apenas uma gota do que eu
experimento caísse no inferno, o inferno se transformaria em paraíso” .
Como vemos “É o fascinante (aspecto do mirum), que
na solenidade, pode encher a alma e dar-lhes uma paz indescritível”.
O majestas
É entendido que o deinos é o numinoso numa forma mais primitiva . No
entanto, esse temor causado pelo deinos, não é o mesmo causado pelo majestas,
pois o terror com relação ao demoníaco é tão somente sinistro, mas em relação
ao numinoso (divino) o temor é mais profundo e mais complexo. Não se trata
apenas de medo, já que ele é majestas, é também reverência e reconhecimento de
uma entidade infinitamente superior.
No Antigo Testamento, o zelo e a cólera de Jahveh poderiam e geralmente
causavam muita destruição. Sua figura inspirava terror: Ai de mim! (Isaías
06:05) “Deus é ira, é cólera, é zelo, é fogo
consumidor...Horrível coisa é cair nas mãos de um Deus vivo...Porque o nosso
Deus é um fogo consumidor” (Hebreus
10:31e12:29 ); “Deus os abandonou às paixões
infames” [...] “e os entregou a um
sentimento perverso, para fazerem coisas que não convém” (Romanos
01:24,26).
Jó também experimenta deste sentimento de ser nada e o outro tudo. É
ele quem controla todas as coisas (monismo), é inacessível, é cheio de poder e
força, é o Senhor que determina tudo, Ele é tudo e eu não sou nada: “O homem diminui e se dissolve em seu nada, em sua
pequenez. Quando mais a grandeza de Deus se revela, clara e pura, a seus olhos,
melhor ele reconhece a sua pequenez” ; Tu és. Meu espírito inclina-se e
tudo que há de mais íntimo em mim presta testemunho ao que tu és. Mas quem sou
eu? O que são as coisas? Sou realmente, e todas as coisas são realmente? O que
é o eu? O que é o tudo? Nós somos algo somente porque tu és e porque tu queres
que sejamos” (citando Terteengen). Ou ainda, segundo Lutero: “Ele vos engole e
encontra um tal prazer que seu apetite e a sua cólera o levam a devorar os
maus. Uma vez que ele começou, não pode mais parar [...] Sim, ele é mais
terrificante e mais horrível do que o diabo, pois ele nos trata com violência,
nos atormenta e tortura sem piedade”
O orgé: início da racionalização
O tremendum e o majestas implicam em um terceiro elemento, o orgé; que
é a energia que empurra o ser humano à vida religiosa, ao zelo, à santidade, ao
amor pelo sagrado . Pode-se entender isso como o início da racionalização do
divino, a transformação do sagrado/numinoso no sagrado/santidade – moral, ético
e dogmatizado. Para Otto, esse é o processo normal da evolução do numinoso
dentro da religião: o desenvolvimento da consciência e obrigação moral diante
daquele que é digno de receber tal reverência e amor.
Na Bíblia, isso começa com Moisés, passa pelos profetas e chega até os
Evangelhos , onde a ênfase é o Reino de Deus que é o numinoso racionalizado,
que possui participantes que são chamados de santos, uma característica do
numinoso, e tem um mestre que não é menos numinoso que o Reino de sua pregação ,
o numinoso fica carregado por “elementos racionais, teológicos, pessoais e
morais”.
No Novo Testamento, Deus é Senhor dos céus – numinoso/não-racional, mas
também é Pai – numinoso/racional. Essa questão moral e de expiação, é um outro
aspecto do numinoso de difícil compreensão para o homem natural. Esse não
entende o que é pecado, consegue apenas compreender o que é um erro moral, mas
não consegue saber o que é e qual é o grau de problema que existe num pecado.
Ele está ainda na experiência estética e só assim consegue entender, não faz
parte do universo religioso, e, portanto, não evoluiu como o cristão, como
sujeito religioso.
Já no Cristianismo, o numinoso chega a um tal ponto de racionalização e
evolução (diálogo entre o racional e o não-racional), que para Otto, ela se
estabelece como religião superior a todas as outras. “O mistério da necessidade
da expiação não encontra, em nenhuma religião, expressão tão completa como no
cristianismo”.
O não-racional do numinoso
“O elemento numinoso, não-racional, esquematizado por noções racionais,
dão-nos a categoria complexa do sagrado, no sentido pleno da palavra, na totalidade
de seu conteúdo”.
O não-racional na religião não
diminui a credibilidade da religião, e nem o racional destrói o não-racional
para criar assim credibilidade. E, nesse processo evolutivo, não há apropriação
de um pelo outro, há sim substituição de um pelo outro ou adequação de um ao
outro – num equilíbrio, ligados, mas não associados. Pois, a religião nunca
deixará de ser não-racional e racional9: “a linguagem está tão plena e a vida
tão rica de coisas que estão tão longe da razão como dos sentidos! Elas
pertencem ao domínio do místico. A religião faz parte desse domínio, terra
incógnita para a razão” Tudo aquilo que não pode ser explicado é divinizado, um
conhecimento não-racional, que também segundo Schleiermacher, deveria ser
considerado como forma de conhecimento.
O que seria bastante difícil no não-racional pré-religioso: fábulas e
mitos; elementos da natureza (montanha, sol, lua, rio, etc) como seres vivos –
não como deuses ainda; o demonismo – terror, morte, sobrenatural, sinistro,
espíritos de almas penadas ; o puro e impuro (fora do aspecto moral que se configurou
posteriormente ); a antropofagia e a medicina como magia ; e tantas outras
coisas que poderíamos alistar, que são primitivas, mas que também fazem parte
da religiosidade moderna, talvez ainda em forma primitiva, talvez em forma mais
evoluída: a graça; o culto e a ceia (magia); a predestinação no Cristianismo10
(Paulo) e no Islã11. O não-racional é um “sentimento supra no AT o fator
não-racional do numinoso está em Jahveh e o fator racional está no Elohim.
No entanto na racionalização o numinoso recebeu um conteúdo novo que,
segundo Otto, fez a religião evoluir. O numinoso “tornou-se Deus” e foi
sistematizado. “A idéia de predestinação torna-se, numa religião racional como
o cristianismo, perniciosa e intolerável, por mais que se tente fazê-la
inofensiva através de atenuações múltiplas”. “Assim também se explica o que se
acostumou chamar de caráter fanático desta religião. O sentimento do numen, é a
essência do fanatismo”.
Por essa razão, são de difícil explicação e compreensão: “Os elementos
racionais como os não-racionais da categoria do sagrado são elementos a priori.
A religião não está nem sob a dependência do telos nem do ethos e não vive de
postulados. O que nela há de não-racional possui, por sua vez, origem
independente e mergulha diretamente as suas raízes nas profundezas ocultas do
espírito”.
Conclusão: o a priori
O sagrado de forma simples é formado pela tensa e contínua relação dos
elementos, racional e não-racional. O racional como já observamos constitui a
domesticação do numinoso pelo divino e religioso, o sagrado (numinoso)
substituído pelo sagrado (moral e ético). O não-racional é a expressão da
experiência do religioso com o numinoso, como algo integrante da vida. Para
Otto, essa substituição de um pelo outro, constitui uma evolução do numinoso na
religião: “todo o nosso conhecimento (razão) inicia com uma experiência
(não-razão)”.
Lutero entende que esse conhecimento, fruto da experiência, é um “a
priori místico no espírito do homem”. Todos os seres humanos possuem uma
faculdade pneumática (spiritus sanctus) que os conduzem ao numinoso , isto pode
ser visto por exemplo, em Lutero, quanto ao seu conceito de Graça que se
estabelece em Jesus. Esse sentimento, segundo Otto, não é universal no sentido
de que todos os que possuem, busquem o divino o necessariamente.
Esse sentimento é uma predisposição ao numino, que se dá no homem
natural a partir da estética e no religioso a partir da religião. “Desde os
dias da minha infância, minha alma buscou-o, com uma sede ardente” (Suso ). “De
onde a conhecem que assim a querem? Onde a viram, que assim a amam? Por certo
que a temos, não sei de que modo” (Agostinho ). Esse sentimento não se explica,
não se entende, não precisa de justificativa, apela a julgamentos a priori,
isto é, da consciência religiosa, as profundezas da alma, dos recônditos do
ser.
Essa predisposição ao religioso, além de ser encontrada, em maior grau,
nas pessoas mais simples (menos cultas) e em pessoas mais cultas (basta lembrar
ou se encontrar com as antigas experiências religiosas); também se encontra,
como predisposição, nos seres que além de possuírem uma experiência com o
numinoso, são também criaturas numinosas, o que não é para todos : “o demoníaco
é aquilo que a inteligência e a razão não podem descobrir (Goethe)” [...]
“Certas criaturas têm um caráter demoníaco, e noutras o demoníaco torna-se sensível
apenas parcialmente” . Esse demoníaco, “energia e superioridade absoluta”,
aparecem em alguns homens de forma extraordinária, o que faz deles homens
santos, o que na verdade não são, são apenas numinosos : “o santo não ensina a
sua santidade, a torna [sic] visível” , como Jesus por exemplo: “e eles se
maravilhavam, e seguiam-no atemorizado” - Mateus 10:32.
Rudolf Otto
Seu humilde teólogo,
Leivison Barros S.
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